Introdução
Quem foi melhor: Pelé ou Garrincha? Essa dúvida frequente nas discussões dos amantes do futebol sempre esbarra no papel e interferência da mídia na carreira de um jogador. Mas será que esse fator pode ser realmente decisivo? Nos tempos atuais dos jogadores-celebridade, acompanhando a evolução da cobertura da mídia e do jornalismo esportivo sabemos que sim.
Com a transformação do esporte em fenômeno midiático, percebemos todo e qualquer jogador como um produto em potencial que vai atingir algum público alvo e se tornar um garoto propaganda. Garrincha e Pelé tiveram um tratamento diferenciado em sua carreira e isso foi fundamental para formação da imagem que perdura ate hoje sobre os dois ídolos do esporte nacional.
O esporte como fenômeno midiático
O futebol é considerado uma religião. Seu aspecto mítico contribui para que na nossa sociedade profana, ele seja o “altar”, onde o indivíduo vai realizar sua vontade de transcendência como em uma sociedade sagrada. É como uma válvula de escape, suas tristezas do dia a dia são esquecidas quando seu time do coração ou a seleção de seu país entra em campo. Através do jogo, países subdesenvolvidos e pobres se igualam aos desenvolvidos e ricos. Quando está assistindo a um jogo, o torcedor se “aliena”, se “transporta” para um outro mundo, cria no herói que está dentro de campo o seu sucesso, é como se ele tivesse vencido. Dessa forma, o ídolo gera uma relação de afinidade como o espectador e torcedor, sendo sua presença no jogo, decisiva para o sucesso do espetáculo.
A mídia, cada vez mais influencia no espetáculo esportivo. Antes, um torcedor precisava ir até à banca de jornal ou ir ao estádio para saber o resultado do jogo. Com o rádio, depois a televisão e hoje a internet, ele não precisa sair de casa para acompanhar toda a rodada do campeonato.
Não é à toa que a Copa do Mundo é o evento mais assistido do mundo, o futebol é um esporte televisivo. A presença da televisão é fundamental para o sucesso do esporte. É o que afirma NUZMANN (1996:15), presidente do Comitê Olímpico Brasileiro (COB)
...o Presidente do Comitê Olímpico Internacional COI, Marques Juan Antônio Samaranch ressaltou que os esportes que não se adaptarem à televisão estarão fadados ao desaparecimento. Da mesma forma, as televisões que não souberem buscar acesso aos programas esportivos jamais conseguirão sucesso financeiro e de público.
No Brasil, a televisão esteve sempre ligada ao futebol.
A unificação do país, por meio da TV, foi empreendida inicialmente pelo futebol; em seguida, veio a voga da telenovela (...) Moral da história: o futebol tem sido o veículo por excelência da expansão da videoesfera no Brasil. (MARQUES, 2005,p.149)
A televisão procura o tempo todo espetacularizar suas imagens para vendê-las e não é diferente com o esporte. Dessa forma o esporte passou a ser uma mercadoria e se tornou um show de entretenimento. A partir desse momento podemos analisar e entender qualquer atleta como um produto que pretende ser vendido, que quer ser visto como o melhor, e que todos, para serem tão bons quanto ele, devem ser como ele. Surgem assim, os grandes astros e celebridades do esporte: o fenômeno, o rei, o imperador, a atleta do século, o maior de todos os tempos em todos os esportes.
O futebol alimenta o imaginário do torcedor que através da mídia, se identifica com o jogador, o idolatra, construindo os mitos. A mídia e o esporte trabalham muito bem a formação e destruição do mito. A mídia tem a necessidade de produzir novas “mercadorias”. Portanto, cria mitos profanos, pessoas que têm uma aparência comum, de origem nas camadas populares que têm no esporte uma capacidade de ascensão social, gerando o consumo. Um consumo proporcionado pelo entretenimento que muitas vezes será feito pela paixão, tornando o consumidor mais influenciado pela marca ou organização que seu ídolo representa.
As grandes corporações passaram a investir no futebol, os craques do campo viravam garotos-propaganda de cigarros, bebidas, etc. Os clubes passaram a ter patrocinadores nas camisas, chegando hoje a terem departamentos de marketing e assessores de imprensa para garantirem a boa imagem dos atletas do time e do próprio clube. A afirmação do brasileiro João Havelange quando assumiu a presidência da Fifa, resume bem o que o futebol se tornava: “Vim para vender um produto chamado futebol.” Demonstrando que o esporte se tornou um fenômeno midiático.
A trajetória de Garrincha e Pelé
Na primeira vez que Garrincha apareceu na mídia, seu nome foi anunciado errado: Gualicho. Depois dos treinos de Garrincha no Botafogo, os repórteres correram para cima dele. O que se leu no jornal foi que um garoto de pernas tortas, tinha dado um “baile” em Nilton Santos, o melhor zagueiro do país.
Sandro Moreyra escreveu a matéria no Diário da Noite, afirmando que a jovem revelação do Botafogo se chamava Gualicho. Sandro tinha ouvido Garrincha falar seu nome, mas achou que não combinaria um nome de passarinho, com um jogador de futebol.
Não foi a primeira vez que Sandro inventou algo sobre Garrincha. Foi ele que afirmou que Garrincha chamava todos seus marcadores de “joão”. Uma mentira, mas que ajudava a reforçar a imagem de ingênuo de Garrincha. Sandro inventava as histórias e Mário Filho acreditava e publicava.
Sandro e Mário não calculavam que essas histórias seriam repetidas, deturpadas e que, com elas, estava criando o mito de um gênio infantil, e quase debilóide, que não fazia justiça a Garrincha. (CASTRO, 1995, p.261)
Até que o repórter Geraldo Romualdo da Silva, do Globo, encerrou as dúvidas com uma manchete em seis colunas com o título: “Meu nome é Manoel, mas meu apelido é Garrincha.”
Depois da primeira aparição, Garrincha continuou aparecendo na mídia como um driblador fantástico e um dos maiores pontas do Brasil. Na parte pessoal, foram várias as reportagens de Garrincha em seu “habitat natural”. Em Pau Grande, caçando passarinhos, sendo fotografado nas belíssimas cachoeiras, alimentando o mito de homem do campo. A cada reportagem reforçava-se a imagem da felicidade de Garrincha em seu bucólico universo.
Ele era puro, autêntico e outros adjetivos em voga. Sua casa era um casebre, mas ele não a trocaria nem pelo Taj Mahal.(...)Podendo ter todo os luxos e confortos de um campeão do mundo, preferia viver como um operário. Ou como um camponês.(CASTRO, 1335, p.232)
Sua imagem era de um homem do campo, ingênuo, que preferia o sossego da roça à agitação da cidade, que chamava seus marcadores de joão. Era como um plebeu, um homem do povo. Bem difícil de se comparar com alguém que detêm a imagem de “rei”.
A transformação de Garrincha em mito foi demorada. Nos seus primeiros anos de Botafogo foi criticado por driblar demais. Mas o clássico contra o Fluminense na final de 1957, foi decisivo para sua transformação em ídolo nacional e um dos nomes que não poderiam estar de fora na Copa do Mundo da Suécia.
Até o jornal francês L’Equipe, colocava Garrincha como titular absoluto. O jornalista francês Gabriel Hannot veio cobrir a preparação brasileira para a Copa e afirmou quando lhe perguntavam na França o que tinha descoberto no Brasil: “Maracujá e Garrincha”. Sua fama começava a se consolidar internacionalmente.
O Brasil tinha fama de “vira-latas”, um time que só ia para a Copa para aprender. A imprensa não acreditava no título em 1958, quanto mais após o empate contra a Inglaterra em 0 a 0, na segunda rodada da Copa da Suécia. E o próximo adversário seria a temível URSS.
No script para se ter um herói, precisamos de uma pessoa normal - como qualquer cidadão - que supera todas as dificuldades e conquista seu objetivo, salva uma população, um país. O que dizer de Mané? Ele não era normal. Se para uma pessoa normal já seria difícil fazer o que ele fez, imagine uma pessoa estrábica, com as pernas tortas, uma seis centímetros mais curta que a outra e que nunca tinha feito um exercício físico na vida até os 19 anos. Pois bem: ele superou o futebol científico dos russos e começou ali a idolatria ao menino de pernas tortas que conseguiu tornar uma Copa perdida em algo possível, colocou as pessoas nas ruas para comemorarem a vitória e se tornou a alegria do povo.
Nelson Rodrigues, em uma de suas memoráveis crônicas, credita a Garrincha o mérito maior de ter acabado, em duas Copas, com o complexo de vira-latas que amargurava o povo brasileiro.(NOGUEIRA, 2005, p.12)
No jogo seguinte, contra o País de Gales, Amaro, o pai de Garrincha, foi convidado pelo presidente Juscelino Kubitschek para acompanhar o jogo no palácio do Catete. Quando saiu, recebeu o agradecimento de Juscelino por tudo que seu filho estava fazendo pelo país. Foi nesse momento que Garrincha se tornou um herói nacional e se transformou em um mito, um herói midiático.
O Brasil conquistou a Copa e Garrincha consolidou de vez a sua imagem de herói e mito do esporte nacional. A chegada dos jogadores brasileiros foi triunfal, principalmente para os principais heróis do título: Garrincha e Pelé. “Eram como soldados que estivessem voltando, vivos e vitoriosos, da guerra da Coréia.” (CASTRO, 1995, p.183)
A conquista da Copa trouxe uma nova alma ao povo brasileiro, um sentimento de esperança de que mesmo um semi-analfabeto e pobre, poderia vencer. O mito de Garrincha se tornara mais forte, o povo via nele o espelho de uma possível mudança.
Garrincha começou a receber cartas de todas as partes do mundo. Pau Grande se tornou mundialmente conhecida. Um jornal francês soltou: “Brésil, capitale Pao Grande” Até o nome da cidade tentaram mudar para Garrincha, tamanha sua popularidade e fama. Garrincha logo recusou: “Onde já se viu? Pau Grande é um nome tão bonito.”
Waldir Amaral criou a imagem de vários jogadores durante a Copa que ele transmitiu pela rádio Continental. Garrincha recebeu o nome de “demônio das pernas tortas”, referindo-se ao inferno que Mané levava às defesas adversárias.
Garrincha foi o segundo jogador mais cantado da música brasileira, só perdendo para Pelé. Marchinhas de carnaval, sambas, tudo que falasse de Mané era certeza de sucesso.
O inventor do “Fair play”, um jogador muito disciplinado fazia justiça “à imagem que os cronistas haviam criado para ele: a do passarinho, a alma ingênua e alada do futebol.” (CASTRO, 1995, p.213). Alguns cronistas preferiam chamá-lo de anjo e outros de demônio. Mas sua imagem já estava mais do que consolidada.
Para provar isso, Garrincha venceu a eleição do jogador mais popular do Rio. A eleição foi promovida pelo Jornal dos Sports e Garrincha recebeu uma ajuda especial de Elza Soares, a grande sensação do samba nacional. Os dois apareciam juntos para conseguir votos, davam autógrafos e entre uma fotografia e outra Mané lançava seus olhares para Elza.
Mané reafirmou seu papel de herói nacional na Copa de 1962 no Chile. Sem Pelé, Garrincha fez de tudo e o Brasil voltou com o bicampeonato. Garrincha fez gol de falta, de cabeça, jogou pelas duas pontas, parecia um super homem, presente em todos os espaços do campo. Para quem tinha dúvida se ele era melhor que Pelé ou que era um jogador de uma jogada só, viu o “demônio” ou o “anjo” não precisar do “rei” para ganhar novamente a Copa. Mais uma vez aquele homem simples era o melhor do mundo, fazendo seu povo ter orgulho de ser brasileiro.
Após a Copa, Garrincha passou a ser o garoto-propaganda preferido das agências de publicidade. Fez comerciais para as “Lojas Ducal” e lojas de sapatos, onde até suas filhas com Nair apareciam.
Garrincha era um ídolo nacional e explorado pela mídia. Para os assessores de imprensa de hoje, seria um “prato feito”. Quem poderia sujar a imagem de um homem querido por todos, ingênuo, namorador, e que além de ter sido o herói em 1958, tinha ganho sozinho a Copa do Mundo de 1962, confirmando a hegemonia do futebol brasileiro no mundo? Naquele tempo, sem assessoria, podia sim e sujaram.
A imagem de Garrincha começou a mudar quando a imprensa tomou conhecimento do nascimento da sexta filha de Mané com Nair, sua esposa. A imprensa achou que Garrincha tentava desesperadamente ter um filho e era contemplado com uma filha atrás da outra. Foram feitas várias reportagens com Mané e suas filhas em Pau Grande. Ele brincava com elas, jogava bola, mostrando-se um pai carinhoso, o que realmente era, nas poucas vezes que ficava com elas. A imagem de um bom pai durou até 1962, quando o caso de Garrincha e Elza estourou na imprensa.
Elza alertava Garrincha sobre sua importância, dizendo que ele não poderia ganhar menos que Pelé. No Botafogo, Garrincha queria uma renovação com um contrato melhor, os dirigentes colocavam a culpa em Elza. O final do campeonato carioca se aproximava do fim e Botafogo e Garrincha não chegavam a um acordo. A imprensa não sabia ainda do romance, apenas informava que Garrincha estava discutindo o contrato com o Botafogo às vésperas do jogo decisivo contra o Flamengo. Alguns torcedores já passavam a hostilizar Garrincha. Mané decidiu jogar a final, ser campeão e depois negociar. Fez a melhor atuação de um jogador na história do Maracanã, marcou os três gols na vitória do Botafogo e foi bi-campeão carioca.
O contrato não foi renovado e as notícias da briga de Garrincha com o Botafogo estavam nas manchetes. Garrincha pediu seu passe ao Botafogo. Não lhe foi dado. O joelho de Garrincha já estava em estado crítico, não conseguia jogar partidas seguidas sem que ele inchasse. O Botafogo avisou que enquanto não jogasse, receberia o bicho pela metade. Foi então, que o caso Garrincha e Elza explodiu.
Como poderia um bom pai de família como ele abandonar a mulher com, então, sete filhas? Era como se Garrincha não tivesse tido nenhuma mulher antes e como se Elza tivesse destruído um lar que nunca existiu. A imprensa bombardeou os dois: Mané como irresponsável e Elza como destruidora de lares. Para alguns botafoguenses, Elza era flamenguista e queria destruir o Botafogo. O menino ingênuo e com alma de passarinho, deu lugar a um homem irresponsável que abandona o lar por causa de uma “aventura” amorosa. Porém, estava dando mais ibope do que falar o que todos sabiam: Garrincha vencera sua segunda Copa do Mundo para o Brasil. Venderia mais falar que um ídolo nacional estava envolvido num “escândalo” desse.
Toda a imagem de Garrincha, que estava destruída, poderia ser salva com dribles, gols e títulos. Afinal o que ele fazia fora de campo nunca teve importância, ele era um herói nacional por causa do futebol e não por ser um exemplo de bom marido. O maior problema de Mané foi seu joelho. Não conseguia jogar aquilo que sabia, com seu joelho em estado lastimável, a artrose era irreversível e só piorava a cada jogo de Mané. Portanto, o joelho, aliado ao álcool o impediu de refazer sua imagem e o que ficou, a partir desse momento, marcado em sua carreira foi sua vida pessoal.
“...o rito realiza o mito e permite a sua vivência. É essa a razão porque se encontram frequentemente ligados: na verdade, a união é indissociável e, de fato, a separação sempre foi a causa da sua decadência. Separado do rito, o mito perde, se não sua razão de ser, pelo menos o melhor da sua força de exaltação: a capacidade de ser vivido.” (CAILLOIS, 1972,pg.25)
O rito é o drible e Garrincha é o mito. A partir do momento que Mané não pode mais driblar como ele driblava, o mito perde a capacidade de ser vivido.
Nesse momento o mito passa a ser esquecido. Um novo mito chega para substituí-lo: o “rei” Pelé. Apenas sua vida pessoal passa a ser divulgada, o alcoolismo, suas dificuldades financeiras tudo isso vira notícia. Mesmo porque não se tem imagens das maravilhas que Mané fez em campo. Se não podemos recriar o rito através da imagem, o mito só será lembrado por quem viu Garrincha jogar e fazer o que fez.
Se Garrincha nunca mais tivesse jogado, o estrago em sua carreira teria sido menor. A lembrança mais recente seria dos seus dribles e dos títulos. Mas, a cada tentativa de volta, o joelho traía Mané e a imagem de um jogador que mal conseguia andar em campo foi substituindo a do “demônio” de pernas tortas. Não é à toa que Garrincha não tem seu devido valor na imprensa nacional. “Que Deus perdoe, nos meus ingratos colegas, o pecado de esquecer um dos maiores ídolos que a alma popular do Brasil tanto venerou no passado recente.”(NOGUEIRA, 2005, p.12)
Com o “esquecimento” de Garrincha pela mídia, Pelé passa a ser o único ídolo a ocupar as manchetes dos principais veículos de comunicação. Pelé, assim como Garrincha, estava envolvido no mesmo projeto de construção nacional.
Pelé, desde cedo sabia do seu potencial e seu diferencial. Garrincha era a imagem da redenção do povo brasileiro, que não se assusta perante o adversário( todos chamados de “joão”), que parte para cima mesmo tendo pernas tortas e uma difícil história de vida. (...) Os dois eram o exemplo de como os pretos, mestiços, humildes redimiriam o país de sua história de submissões e humilhações. Tratava-se de heróis próximos a grande parte da população, com os quais o povo poderia se identificar. (MELO, p.23)
A diferença começou no nome que dariam a Pelé, enquanto Garrincha seria o “anjo” ou “demônio”, Pelé seria o “rei”. Um rei ninguém discute, apenas reconhece seu reinado. Tudo que um rei faça, mesmo fora de campo não teria importância, afinal ele era um “rei” e nós “súditos” que podíamos apenas idolatrá-lo e cultuá-lo, mas nunca criticá-lo ou contestá-lo. Além disso, um “rei” é único, não pode haver outro, apenas um príncipe, que é inferior ao rei e quando o rei morrer pode tomar seu trono.
O primeiro a chamar Pelé de rei foi Nelson Rodrigues, nos anos 50. Nelson afirmava que Pelé tinha um porte de rei e isso o distinguia dos outros jogadores. “Quando ele apanha a bola e dribla um adversário, é como quem enxota, quem escorraça um plebeu ignaro e piolhento.”(CASTELLO, 2004,p. 195)
Pelé já se destacava no Santos com apenas 16 anos, tanto que jogou a Copa Rocca pela Seleção naquele ano. Com 17 anos era um dos nomes certos para a Copa do Mundo de 1958. Todos já falavam no menino como um “rei”. O nome dado por Nelson tinha pegado. Nelson também escreveu que somente um menino com o porte de rei poderia livrar o Brasil da fama de vira-latas.
Assim como Garrincha, Pelé voltou como herói da Copa do Mundo da Suécia. Marcou seis gols, sendo todos eles decisivos para o título do Brasil. A imagem de Pelé chorando copiosamente, abraçado ao sorridente Garrincha construía a nova dupla que lavou a alma do povo brasileiro.
No período entre as Copas de 1958 e 1962, Pelé se tornou um fenômeno. Foi campeão paulista três vezes, artilheiro de todos os torneios que disputou, fez o gol de placa no Maracanã e recebia o maior salário do futebol brasileiro. A Copa do Chile seria a consagração de um menino aos 22 anos de idade que já tinha conquistado quase todos os títulos que um jogador de futebol pode conseguir. É claro que se Pelé não fosse um gênio, o apelido de rei seria dito algumas semanas na imprensa e com suas fracas atuações seria esquecido. Mas como Pelé ia se superando a cada jogo, ia moldando a imagem de “rei”.
Até sua contusão na Copa do Chile é um fator que ajuda na construção da imagem de um herói. O herói sofre uma derrota grave, mas se levanta e consegue de novo seu objetivo depois de sofrer muito. Pelé queria ser bicampeão do mundo. Conquistou o título mundial pelo Santos em 1962 e em 1963.
Com a Copa de 1966, Pelé seria coroado de vez como o “rei”. Garrincha também foi convocado, marcou até gol na única partida que o Brasil venceu, mas já não era o mesmo. O Brasil fez sua pior campanha em Copas do Mundo, sendo eliminado na primeira fase. Pelé saiu reclamando da violência, dizendo que não jogaria mais uma Copa, isso aos 26 anos. Garrincha não teve a mesma sorte, não pode escolher se continuava ou não, seu joelho decidiu por ele.
Durante 1966 e 1970, Pelé consolidou sua imagem de “rei” no Brasil. Aparecia em todos os programas de TV, rádio, revistas. Foi o jogador mais cantado na música brasileira, e também o jogador mais filmado no cinema brasileiro. Tudo que falava sobre Pelé vendia e dava audiência.
Até que em 1969, Pelé marcou no templo sagrado do futebol, o Maracanã, o milésimo gol de sua carreira, de pênalti, contra o Vasco. Pelé logo pegou a bola e começou a beijá-la, sendo rodeado pelos jornalistas, dedicou o gol às criancinhas do país, pedindo para que elas não fossem esquecidas. O evento foi tão festejado, que alguns dizem que os fatos mais importantes daquele ano foram: o milésimo gol de Pelé e o homem chegar à lua.
A “coroação” definitiva do “rei” foi na Copa de 1970. Nela Pelé se tornou não só “rei” no Brasil, mas também o “rei” do futebol no mundo. Um time fantástico, cheio de craques, comandado pelo seu ex-colega de Seleção: Zagalo. Pelé marcou mais nessa Copa pelos gols que não fez. O chute do meio campo que passou rente à trave contra a Tchecoslováquia. Muitos jogadores já fizeram um gol como esse, mas o comentário é um só: ele fez o gol que Pelé não fez. A defesa do goleiro Gordon Banks, depois de uma cabeçada à queima roupa de Pelé, entrou para a história como a maior defesa de todos os tempos. E o drible de corpo no goleiro uruguaio e o chute para fora é lembrado como um dos gols mais bonitos que alguém não fez. Tudo isso sendo acompanhado pela primeira vez ao vivo, por todo o planeta, a cores. Pelé saiu da Copa como “rei” do futebol.
O título de rei foi levado tão a sério e tão bem construído que não foram poucas as vezes que Pelé foi visitar reis e rainhas de verdade em países europeus, sendo recebido com honras de chefe de Estado. Em qualquer parte do mundo que Pelé chega, todos querem vê-lo, é uma celebridade mundial. Até aqueles que nunca o viram jogar o idolatram, afinal um “rei” não se contesta, apenas se reverencia. Como o futebol é o esporte mais praticado do mundo, Pelé é um dos rostos mais conhecidos no mundo. O próprio Pelé afirmou em uma entrevista em novembro de 2005 que é mais conhecido do que Jesus Cristo.
Em 1980, Pelé recebeu o título de “atleta do século” na França e se tornou a personalidade esportiva mais importante do mundo.
Pelé sempre separou o atleta da pessoa. Em todas as entrevistas que concede, Pelé se refere a Pelé como se fosse uma terceira pessoa envolvida na conversa. É como se ele, o Edson, fosse uma pessoa e Pelé fosse outra. Outro fator que ajuda na imagem construída de Pelé. Tudo que puder manchar a imagem do “rei” na vida pessoal – como aconteceu com Garrincha - é facilmente limpo, pois quem fez foi o Edson. Pelé é só dentro de campo.
O jornalista Fernando Calazans, quando perguntado sobre quais os melhores jogadores da história do futebol, responde: “Pelé e Garrincha, ou até mesmo, como preferem alguns, Garrincha e Pelé. Só os dois - e pronto”(CALAZANS, 2005,p.39). Indagado sobre qual foi a melhor Seleção de todos os tempos, afirma: “Não foi a de 70. Simplesmente porque não pode haver seleção melhor de todos os tempos, nem no Brasil nem no mundo sem a presença de Garrincha. Ponto” (CALAZANS, 2005, p.49)
A Copa do Mundo de 1962 é a menos comentada pelos brasileiros. Para muitos o Brasil não fez mais do que sua obrigação de vencer pela segunda vez seguida. Foi uma seleção espetacular, com a mesma base de 1958, só que com uma experiência muito maior. Garrincha estava mais endiabrado do que nunca. Até o reserva do “rei” Pelé, Amarildo, se destacou. Muito se fala da Seleção de 1958, mais ainda da de 1970, mas muito pouco da de 1962. É claro que isso pesa quando vamos comparar a imagem de Pelé à de Garrincha. Justamente a Copa que Mané foi mais brilhante, que venceu sozinho, é a menos falada. Fala-se muito na que Pelé estreou e mais ainda na que ele se consagrou. Essa última é a mais comentada porque foi a mais vista. Foi a primeira a ser transmitida via satélite para todo o mundo, atingindo um número de espectadores muito maior do que as outras. As imagens eternizaram a conquista do Brasil naquela Copa.
O que faz um jogador ser o que é hoje é o acesso ao material que se tem dele. No Brasil até 1962, não existia vídeotape. Os filmes usados para registrar um jogo tinham oito minutos. Perdia-se muita coisa. Garrincha sofreu com isso, mas, em sua época, foi idolatrado por uma nação inteira, não resta dúvida. (CASTRO, 2005, p.37).
O jornalista Orivaldo Perin, afirma em sua matéria “A TV pereniza gênios e cabeças-de-bagre” que o torcedor desconhece os craques do passado por causa da ausência da televisão até meados dos anos 60. Perin fala exatamente das jogadas geniais dos grandes craques que ficaram perdidas, podendo ser registradas apenas por fotografia, pela emoção dos locutores de rádios e pelas crônicas esportivas.
Hoje, qualquer artilheirozinho tem seus gols e jogadas de efeito registrados em DVD ou disponíveis em arquivos de emissoras de TV. Quantos momentos geniais de Garrincha ficaram registrados só nas retinas dos que puderam vê-lo em campo? (...) Maradona , que os argentinos vêem como deus, surgiu na virada dos anos 70 para os 80, quando a TV já era senhora dos gramados. Trata-se de uma vantagem em relação aos gênios que brilharam antes deles.(PERIN, 2005, p.37)
Luís Mendes afirma que o papel da mídia foi fundamental nas duas carreiras.
E eu considero que se o Garrincha não foi melhor do que o Pelé, também não foi inferior. Só que o Pelé teve mais mídia. Juntaram-se os cariocas que não gostavam do Botafogo ou que torciam contra o Botafogo com os paulistas para fazer do Pelé o maior ídolo nacional. (MENDES IN VENÂNCIO, 2005)
Considerações finais
A primeira conclusão é a presença fundamental da televisão nos meios de comunicação. Tudo aquilo que você vê passa a ser mais real do que aquilo que você escuta ou lê e forma as imagens na sua imaginação. A televisão forma isso para você, da maneira que ela quer.
Garrincha foi um jogador da época do rádio como principal veículo de comunicação. Portanto, tudo que ele fez está apenas na memória ou na imaginação de quem viu ou ouviu. São poucos os lances que se tem sobre Mané. Já Pelé jogou durante a era do rádio, durante a transição para a televisão e foi um dos principais ícones para sua consolidação no país. Seus lances ficam eternizados nas imagens. Toda vez que alguém quiser saber quem foi o jogador Pelé, terá nos arquivos de televisão a possibilidade de reviver o mito do “rei” Pelé. Garrincha não.
Ao longo da pesquisa na realização do trabalho concluí que Garrincha foi melhor que Pelé. Dentro de campo ninguém nunca vai fazer o que Garrincha fez. Jogava o futebol da maneira mais pura possível, driblava por driblar, jogava por jogar e o gol seria uma conseqüência do seu show particular que encantava e fez as platéias do mundo inteiro rir. Jogava para encantar e fazer a alegria do próximo: do companheiro que recebia o passe para o gol ou do público. Garrincha foi um marco. Encerrou a era do futebol alegre, dos jogadores que não ficaram ricos, da beleza do jogo por si só, dos profissionais que bebiam antes dos jogos.
Pelé foi um atleta exemplar, um jogador espetacular, objetivo, que driblava em direção ao gol. O “rei” começou a era do futebol mais físico, da preparação, do resultado. Também foi um marco. Depois dele, o futebol virou um negócio que renderia bilhões de dólares. Foi o primeiro mito do esporte que a mídia fabricou.
Outro fator foi a eterna disputa de quem era o melhor. Não seria possível explorar a imagem de um jogador, como herói e símbolo nacional se não eram todos que concordavam que Pelé era o melhor ou Garrincha era o melhor. Um deveria ser o vencedor e como - para muitos - dentro de campo eles se equivaliam, outra forma de “desempate” deveria ser descoberta.
Foi preciso, então, que a vida pessoal de Garrincha começasse a aparecer na imprensa, como um desregrado, irresponsável, que deixava a mulher por uma cantora famosa. Enquanto a imagem pessoal de Pelé se mantinha intacta, já que ele próprio separava o Edson do Pelé. Só valia o que ele fazia em campo.
Como Garrincha não conseguia mais jogar, sua vida pessoal foi se sobrepondo à profissional, até que a dúvida sobre quem foi melhor fosse respondida da maneira que a mídia queria: ”Pelé”.
A mídia não soube ou não quis valorizar as façanhas de Garrincha e enaltecê-lo como ”rei”. Talvez porque ele fosse simples demais, despojado demais para envergar o manto e a coroa de um imperador. Além disso, para muitos que o conheciam era ingovernável, indisciplinado, recusava-se a aprender mais, a falar idiomas, não tinha perfil de “rei”. Seu “reino” era Pau Grande, onde, acreditava, tinha tudo o que precisava para ser feliz.
Mas, ainda que a mídia não pudesse ou quisesse coroá-lo, em qualquer tempo estará a lhe dever maior reverência por tudo que ele proporcionou aos torcedores do futebol e ao povo brasileiro, que ele alegrou com seus dribles, com seu riso maroto, com sua informalidade de menino, já que por muito menos muitos outros que vieram depois dele e de sua era são considerados celebridades e destacados como verdadeiros heróis nacionais.