Um craque chamado Nilton
"Tu em campo parecia tantos,
e, no entanto, que encanto!
Eras um só, Nilton Santos."
Esse verso é de um poema que Armando Nogueira desfiou para Nilton Santos.
E quantos aqui sabem quem foi ele? Admito, chego a ser ridicularizado quando, da minha idade, falo sobre ele.
Porque Nilton Santos era um craque. O maior lateral esquerdo da história, sem dúvida nenhuma. A enciclopédia do futebol era completa. Simplesmente completa. Ele não tinha defeitos. Aprendeu a chutar com as duas pernas mais por necessidade, para não apanhar de seu pai, que vinha com um chicote em sua direção quando este jogava futebol. Mostrou tal categoria com a perna destra ao marcar, de direita, um golaço contra a Áustria na Copa do Mundo de 1958.
Inventou essa história de lateral atacar. Antes, os laterais eram quase como zagueiros, que não passavam do meiocampo, em consequência dos esquemas hiperofensivos da parte média para frente, leia-se 4-2-4, 4-3-3, e até 2-3-5. Nílton, no entanto, mostrava-se apto a executar com destreza essa função do futebol. Herança, talvez, de seus anos em Flexeiras, bairro pobre onde nasceu, onde era a maior estrela, e ponta-esquerda da equipe Fleixeiras Futebol Clube. Dizia-se que ele era capaz de correr os 90 minutos, cruzar com perfeição, e ainda marcar muitos gols. Nilton Santos.
Era um monstro, literalmente. Tem 1,84 metro, e essa altura, embora hoje seja normal em alguns lugares, o tornava um gigante em meio aos (ainda mais do que hoje) baixinhos brasileiros. A média de altura para os homens, à época, era de apenas 1,69m. Tinha, também, muita força física, braços gigantes, e músculos torneados na parte inferior do corpo.
Sempre foi veloz; tinha um poder de arrancada excepcional, seja para correr ou para afastar uma bola de sua área com maestria de um Domingos da Guia, seja para ir ao ataque, cruzar, ou mesmo marcar gols, com a eficiência de um Leônidas da Silva.
Além disso, era um líder. Os jogadores, por vezes, se queixavam dele por reclamar demais dos companheiros de equipe. Não aceitava perder. Tanto que nunca perdeu uma decisão de campeonato em sua carreira (em campo). Cobrava muito. O legítimo capitão de uma equipe. Existe uma ocasião que ele confessou rindo, que foi na época em que o técnico do Botafogo era Gentil Cardoso. Gentil deixava os jogadores na concentração, que nesta vez era em um hotel que era à beira de um rio, e ia embora arrumar a sua casa em construção. Para manter a ordem, ele nomeava algum dos jogadores para vigiar o lugar da concentração. Certa vez, Nilton Santos foi escolhido, com o aviso: não os deixem pescar. Na verdade, Gentil Cardoso falava isso para todo mundo, que nunca davam ouvidos para ele, e faziam uma festa na pescaria. Nílton Santos, contudo, seguiu tudo à risca, frustrando todas as tentativas dos jogadores de pescar. Os jogadores nunca mais aceitaram que ele fosse o escolhido.
Era um grande profissional. Nunca faltou a um treino sequer em 16 anos de Botafogo. Não gostava de exercícios, verdade seja dita, mas era lúcido para perceber que isso era importante para um jogador profissional. Bem como era igualmente lúcido na hora de perceber, com a perspicácia de um gênio, quando os dirigentes cometiam alguma injustiça contra os seus colegas de equipe; ia, com toda a sua pompa, representar o grupo de jogadores. Certa vez, chegou atrasado a um treino, numa das raras vezes que isso ocorreu, e chegando lá encontrou Joselias, goleiro reserva do Botafogo na época. Joselias, com medo do treinador, pediu para entrar com ele, com a esperança de não ser multado. Nilton Santos, humilde, aceitou prontamente. Chegando ao campo de atividades, ele estava na frente, e o técnico logo falou para Nilton: "Não tem problema, meu craque, pode entrar e ficar à vontade". Atrás, veio Joselias, e Zezé Moreira logo avisou: "O que foi crioulo? Vai logo para a tesouraria ser multado, e depois volte aqui." Nilton não aceitaria uma injustiça dessas; voltou como num passe de mágica, e falou que se Joselias fosse multado, ele também teria que ser. Conversa pra lá, conversa pra cá, tudo acabou bem para ambas as partes.
Encerrou a carreira em 1964, depois de vencer o Flamengo por 1 a 0 no seu jogo de despedida. Foi ser técnico. Nunca foi ninguém de respeito como um técnico, mas muito disso se deve à sua exigência de que os jogadores fossem ao treino. Também não aceitava "salto-alto". Afinal, não conseguia entender como jogadores de tão baixo nível achavam-se craques. Logo ele, que jogou com Pelé, Garrincha, Gérson e Didi. Como dirigente do Botafogo, também não deu certo, mas por um simples motivo: não aceitava injustiça contra os jogadores. Do outro lado da moeda, soube das atrocidades que os cartolas cometiam contra os craques, e recusava toda e qualquer tentativa de prejudicar o profissional. Era um dirigente com espírito de jogador.
Achou seu lugar trabalhando com as crianças, que, segundo ele, "ouvem, prestam mais atenção do que os adultos". Trabalhou em Uberaba, Niterói, mas foi em Brasília, minha cidade natal, onde mais se identificou. Criou a escola de futebol Nílton Santos, que curiosamente, já fiz parte quando tinha na casa de meus 5 anos. Saí rapidamente, porque para mim "era estranho". Oh, arrependimento. Tinha, sim, crianças carentes, algumas que poderiam até se identificar com o crime. Era de graça. Mas eu não sabia quem era Nilton. Ensinava tudo para as pessoas, incluindo lições de moral. Segundo Nilton, em seu livro, ele ajudou muito um moleque chamado Beiçola. Era grande, forte, mas era um criminoso, e numa partida de recreação durante sua escola de futebol, não jogou nada e pôs a culpa em todo mundo. Foi assustar um por um. Nilton Santos não aceitaria uma injustiça daquelas. Dirigiu-se na direção do menino e, em meio a várias crianças, deu-lhe uma lição de humildade. Bateu embaixadinhas, e, mesmo velho, arriscou até algumas jogadas no campo. O menino, vendo aquele velho fazer isso, aquietou-se e procurou ser humilde.
Foi, sem nenhuma dúvida, o maior ídolo da história do Botafogo. Pode não ter sido o melhor jogador da história desse clube fantástico, mas foi, com certeza a sua maior criação. Amava - e ama - o Botafogo. Chegou a assinar 3 contratos em branco, para os dirigentes definirem seu salário, em seu auge de carreira. Acabou sendo mau exemplo para os cartolas, que falavam para alguém que queria aumento: "O Nilton Santos é um craque e assina em branco, ganha pouco." Quando saiu do Botafogo, não teve sequer uma homenagem, nem ao menos um jogo de despedida, que fosse realmente um jogo amistoso, com fim apenas de entretenimento. Encerrou a carreira, também, pelas injustiças que cometiam contra seu melhor amigo, Garrincha. Malditos dirigentes.
Talvez por causa disso, hoje, é preciso falar que os comandantes botafoguenses o respeitam. Pagam até o tratamento contra o mal de Alzheimer, e vivem fazendo homenagens a ele. Costumamos "meter o pau" quando fazem alguma bobagem, mas é preciso também elogiar quando necessário.
E, depois de tanto tempo, falou em 2004, bem qual uma criança, durante entrevista.
"Minha religião é não fazer mal a ninguém e se puder ajudar alguém. Se ele existe lá em cima não vai me castigar por isso. Eu não sou daqueles que faz barbaridades, acende uma vela, se benze e acha que está perdoado."
Sobre o fato de não ter saído do futebol rico, respondeu com a precisão dos tempos de jogador:
"Eu não saí rico. Sei lá, eu também rico de repente poderia fazer bobagem, né. Minha vida é fazendo o que eu gosto, trabalhando com criança, ir no Maracanã todos os dias, que foi a minha casa. Nós não somos nada, a gente tá aqui de passagem. Um dia, quem sabe, eu gostaria que, assim, você chegar no céu, ia ser espetacular, né? Com certeza o Sandro (Moreyra), o João Saldanha, seriam amigos de São Pedro, sabe? E me apresentar, e eu já chegava lá, sabe? Mas eu não acredito nisso não, eu acho que morreu acabou. Mas o bom é o pessoal lembrar da gente com saudade."
Quando perguntado sobre a ignorância de Pelé em não colocá-lo na lista dos 100 maiores jogadores de todos os tempos, como bem gosta de ser falso esse Édson Arantes, apenas disse:
"Já desencarnei disso tudo, e eu acredito até que tenham armado pro Pelé uma coisas dessas. Fez a relação e ele em confiança a alguém, coassinou alguma coisa e autorizou o cara a usar o nome dele. Até que fosse eu não ia cobrar nada dele. -Você não cobra nada de ninguém? -Não cobro, não tenho esse direito, quê isso, a minha religião, quero estar bem comigo. Se eu estiver bem comigo eu sou valente demais, eu já provei isso."
Calma, Nilton Santos.
Pelé como jogador foi grande coisa. Mas não foi o melhor.
Assim como pessoa, não é grande coisa. Ou melhor, não é nada.
Minha pequena homenagem ao elegante Nilton Santos,
Cristiano Soares.